O ranheta7 minutos de leitura

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Era uma vez uma cidadezinha chamada Sete Colinas, perdida no meio do mapa, onde viviam Cícero e Lucimara, dois jovens de origem humilde; ela, professorinha de uma escola infantil; ele, pedreiro que havia ajudado a construí-la. Foi ali que se conheceram, na festa de inauguração da pequena escola da periferia, na presença do prefeito e de todos os vereadores, além dos trabalhadores rurais que moravam nas fazendas próximas, todos enfeitados para a ocasião.

As festas eram bem animadas por ali e até a simples inauguração da escola era motivo para estender a animação até a noite, quando começava o baile.

Naquele dia, Lucimara vinha acompanhada de Janaíno, seu eterno pretendente, um atarracado vizinho que há muito alimentava a esperança de tê-la como esposa.

 

Mas, Cícero, que a via e a acompanhava em todas as visitas à construção, estava encantado com tamanha belezura e simpatia, e havia se decidido: iria pedi-la em namoro na primeira dança. Sentia que, por ser mais alto e musculoso, não teria dificuldade em se sobressair.

Coincidentemente, Janaíno também via aquela oportunidade como um presente dos deuses. Afinal, aquela era sua primeira chance de tê-la tão perto, envolta em seus braços. Era hora de tomar a iniciativa de se declarar, como tantas vezes ensaiara, sem coragem de expor seu mais profundo sentimento.

Foi Cícero, entretanto, quem a convidou para a primeira dança, seguro de poder impressioná-la com seu corpo musculoso e suado. Havia trabalhado na obra naquela manhã e emendara sua permanência no local até a hora do baile sem sequer trocar de roupa. Lucimara, bem mais baixa, era puxada a cada giro para junto de seu tórax inflado e malcheiroso, com o nariz atochado em sua axila, torcendo para a música terminar.

Assim, Janaíno teve sua vez. Tinham praticamente a mesma altura, o que deixava suas bocas mais próximas e permitiu que ele segredasse, em sussurros, seus sentimentos por ela.

Ali começou o namoro que mudaria o país.

Dois anos mais tarde, já casados, chegou a hora de Lucimara desembuchar aquela minúscula figura gosmenta que recebeu o nome de Astolfo. Pesava pouco mais de dois quilos, e nem precisou da ajuda da parteira para começar a chorar. Já saiu do útero da mãe berrando feito um cabrito.

Mal chegou ao mundo e já tentava articular seus dedos médios, como se quisesse sugerir o destino de quem o cercava. Levou tempo, tinha mais facilidade em mostrar o dedo anular… Por incrível sinal de predestinação, “anular” seria seu verbo preferido no futuro.

Astolfo foi o único rebento do casal que constantemente era avisado por amigos que filhos únicos costumam dar trabalho, não se deve mimá-los.

Quando o menino foi matriculado na creche, aos três anos de idade, seu comportamento já incomodava os membros da equipe escolar. Reclamava de tudo e, quando frustrado, corria e agarrava a saia da mãe aos prantos, implorando por sua interferência. Se queixava da merenda, dos brinquedos, dos colegas; era egoísta e manhoso, atirava-se no chão e debatia-se chamando por sua protetora, sem sossego. Birra era sua “marca registrada”. Isso fez com que as pessoas passassem a se referir a Astolfo como o ranheta.

Quando o ranheta começou a falar, a coisa ficou um pouco pior. Sua voz fina e estridente derrubava qualquer negação de mimo. Em represália, seu pai impôs que a criança só usasse roupinhas femininas até que aprendesse a agir como um homenzinho.

Essa fama não o deixou mais. Astolfo era aquele menino que ninguém queria ter ao lado na hora do recreio. Nem mesmo depois de sua mãe lhe comprar uma bola de capotão e fundar um time de futebol com a esperança de atrair os outros garotos. “— Ai, que óóóóódio!!! – Gritava ele quando não conseguia satisfazer seus desejos.

Certa vez, ao fazer uma redação, ele escreveu que seu pai o havia ensinado a ser um “cervo de Deus“. A professora tentou corrigi-lo, dizendo que o correto era “servo”, com “s”, porém, a criaturinha insistiu que era cervo mesmo, como seu pai lhe havia ensinado. E deixou a sala, depois de ajustar os óculos sobre o nariz, saltitando de satisfação. Ninguém podia contrariá-lo.

Astolfo tornou-se professor de História, e sempre a distorcia a seu bel prazer para os alunos, invertendo os papéis das personagens. Bandido virava mocinho e vice-versa. Acostumou-se tanto com isso que decidiu ser político, escolhendo o “lado escuro da Força”, onde, por falta de concorrência, conseguia aparecer mais. E buscava todas as oportunidades de aparecer, ainda que lhe faltassem bons argumentos. Fazia isso porque era de sua índole reclamar de tudo! E não tendo a mãe por perto, fazia manha aos pés de quem pudesse [simple_tooltip content=’Acocar: verbo. Amimar muito (a criança); acocorar.’]acocá-lo[/simple_tooltip]. Até escolheu um padrinho para fazer isso.

Eu não quero que me chamem de ranheta! Não admito! Não quero! Não quero! – Repetia Astolfo todos os dias, atrapalhando o trabalho do padrinho, que sempre o atendia, mandando punir os que assim o chamavam. Foi promulgada até uma lei proibindo o uso da palavra “ranheta”.

Astolfo, apesar de ser apenas um peão, sentia-se como um rei…

Um belo dia, seu padrinho, bastante atarefado, encontrou-o no corredor do prédio onde criava novas leis e novas penas, cada vez mais pesadas, e perguntou ao protegido:

— Astolfo, você aqui novamente? Por que não está no seu posto de trabalho?

— Eu gosto mais daqui, padrinho. Aqui ninguém me chama de ranheta, você faz todas as minhas vontades… Lá só tem gente chata, discutindo sobre coisas importantes e complicadas. Eu nasci para ser o centro das atenções, mas eles não deixam! Quando eu consigo subir à tribuna, eles ficam me interrompendo e repetindo “pela ordem, senhor presidente, pela ordem” e aí a ordem acaba no plenário e eu não consigo ter meus chiliques, digo, fazer meus discursos. Eu estou até pensando em criar uma CPI para obrigá-los a ficar me ouvindo…

O mundo está cheio de ranhetas, de crianças mimadas que, um dia, podem vir a se tornar políticos e ganhar verdadeiras fortunas, apesar de sua inutilidade. Por isso é importante conhecer, o mais profundamente possível, cada candidato e escolher certo na hora de votar. Se é que ainda poderemos voltar a fazer isso.

PARA COM ISSO! EU NÃO QUERO! NÃO ADMITO! – Berrou o ranheta depois de ler este post.

Em tempo: qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. Ou não.

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