Meus respeitos e saudade de Clineu Carmignotto6 minutos de leitura

0
52

Clineu Carmignotto foi meu senhorio em Bragança Paulista. Era filho único, solteiro, idoso, solitário, sem vícios e, segundo seu amigo e advogado, Dr. Laerte, era sistemático. No tempo em que o conheci, possuía 16 imóveis.

O primeiro imóvel dele que aluguei é descrito na postagem “Enfim, um lar“, neste blog.

Depois de passar meu primeiro período em Bragança Paulista morando num “apertamento”, encontrei a casa de número 13 da Travessa da Imprensa vazia, com uma placa que a oferecia para aluguel. Pelo estado do imóvel, imaginei que não poderia ser muito caro, e me interessei por ele. O primeiro contato foi feito com o advogado.

O adjetivo “sistemático” foi citado para justificar a negativa quando perguntei se a casa seria, pelo menos, pintada antes de ser ocupada.

Pois bem, assinei o contrato, peguei as chaves e contratei a pintura e a recuperação do reboco do hall de entrada (chamado de “sala”), para ter as condições mínimas de habitar o imóvel sem preocupação.

O sr. Clineu não aceitava outra forma de pagamento senão em dinheiro, e ia pessoalmente recolher os aluguéis em todos os seus imóveis. Nada de interveniência de imobiliárias, administradoras, bancos ou qualquer outra.

No primeiro vencimento do aluguel da casa onde fui morar, chegou ele. Era uma manhã de sol intenso, fazia muito calor, e aquele homem mal vestido e de pele muito branca não mostrava grande disposição para ser simpático. Falava pouco e mantinha seu semblante circunspecto.

Abri o portão e convidei-o para entrar e aguardar à sombra pelo dinheiro. Percebi que ele olhava com atenção a situação do imóvel, sem imaginar o que faria depois.

Ele contou as seis cédulas de R$ 100,00, umedecendo os dedos com a saliva ao movimentá-las, e me devolveu uma.

— O valor não está certo? – Perguntei. E naquele momento conheci a faceta que o advogado omitira.

— Tá certo, mas eu vou te ajudar, você está cuidando bem da casa. – Respondeu.

E assim foi durante os dois anos em que morei ali. Ele me devolvia uma parte do aluguel em reconhecimento aos melhoramentos que iam sendo feitos no imóvel.

Em 2012, aceitei um convite para prestar serviços a uma empresa em Pirajuí, SP. Sabendo que teria que permanecer naquela cidade, mas temeroso com o que poderia acontecer, decidi manter a casa alugada.

Foi uma fase interessante, uma experiência válida, porém, com um fim previsível. A empresa que me contratara, com um salário exagerado diante das circunstâncias, acabou falindo. Depois de dois meses sem receber um centavo sequer, tive que improvisar, a duras penas, meu retorno. Entretanto, eu havia alugado uma casa enorme, na verdade, uma chácara, no centro da cidade, e num determinado momento achei que devia mobiliá-la.

Os móveis não caberiam na pequena casa da Travessa da Imprensa, então, num domingo, com o caminhão de mudanças a caminho, expliquei a situação ao sr. Clineu, e ele me disse que possuía um outro imóvel vago, à Avenida São Lourenço, bem próxima à residência dele. Era onde ele passara sua mocidade, quando ainda morava com os pais.

Foi amor à primeira vista. O aluguel era mais caro, mas oferecia conforto, era próxima do comércio, segura, bem ventilada, ensolarada e bem distribuída.

A construção de uma amizade

Talvez devido à proximidade, e também ao seu isolamento, o sr. Clineu passou a me visitar com mais frequência. Até mesmo quando se submeteu a uma cirurgia de varizes e devia permanecer em repouso. Aparecia sem aviso, levando com ele o colírio que deveria aplicar nos olhos depois da cirurgia de cataratas, e perguntava se eu podia fazer aquilo. E assim, passávamos horas conversando. Ele, já com seus 73 anos, me contava sobre uma moça que conhecera na juventude e havia morado com sua família ali. Dizia que ela agia de “forma inconsequente” naquele tempo, mas que estava mudada, propondo que se casassem e adotassem uma criança. Eu brincava com ele, dizendo “Ah, até eu quero me casar com o senhor! O senhor vai deixar todos os seus imóveis para mim?”, e ele respondia com um sorriso, escondendo uma réstia de raciocínio frio com seus olhos azuis, agora brilhantes.

O sr. Clineu era ingênuo. Sua generosidade o impedia de ver maldade nas pessoas. Era assim com os pedreiros que cobravam diárias e levavam meses para realizar um trabalho que poderia ser feito em semanas, com vizinhos a quem pagava – e muito – para acompanhá-lo quando ia ao médico, com as meninas que batiam à sua porta contando histórias tristes. Dinheiro não era importante para ele! Era comum levar para almoçar num restaurante o pessoal que trabalhava para ele.

Tive pena quando roubaram sua VW Parati.

Não foi diferente comigo. Quando a situação apertou, em 2014, com a crise econômica e o desemprego, ele me disse para não me preocupar, que eu poderia continuar morando ali, e que não seria a primeira vez que ele fazia isso. Ajudou também um casal que deixou de pagar os aluguéis. Agradeci e disse a ele que eu não conseguiria dormir sabendo que devia a ele. E mesmo assim, minha mudança ainda demorou para acontecer.

Ele estava lá, oferecendo seu apoio no dia em que me mudei, no ano seguinte. Prometi que faria de tudo para recompensá-lo por tudo.

Tentei telefonar algumas vezes, sem sucesso. Passados uns quatro anos, já durante a pandemia, estive em sua casa, contudo, ninguém atendeu à campainha. Depois, tentei outras ligações, sempre sem sucesso. Minha preocupação foi se tornando maior.

Tempos atrás, resolvi fazer uma pesquisa no Google com seu nome e encontrei um registro do Jornal de Bragança, notificando seu falecimento em agosto de 2018. Ainda solteiro.

Eu costumava sugerir que ele registrasse um testamento, ainda que fosse para deixar seus bens para instituições de caridade, e ele me dizia que faria isso “quando ficasse velho“. Ria ao comentar que seus quarenta e tantos primos se digladiariam quando ele morresse, sabendo que não faziam parte dos herdeiros naturais (filhos, cônjuge, pais e irmãos), pois não os possuía.

Lamento por não tê-lo reencontrado com vida, e também por não conseguir convencê-lo de que deveria se afastar daqueles a quem procurava para ajudá-lo e apenas o exploravam, cujas histórias me foram contadas por ele próprio. Era tolerante com eles.

Escrever este post é a maneira que me resta para homenageá-lo de alguma forma. Não há outros como ele que eu conheça; foi, verdadeiramente, um anjo para mim. Que Deus o tenha em bom lugar.

O que você achou disso?

Clique nas estrelas

Média da classificação 0 / 5. Número de votos: 0

Nenhum voto até agora! Seja o primeiro a avaliar este post.

Como você achou esse post útil...

Sigam nossas mídias sociais

Lamentamos que este post não tenha sido útil para você!

Vamos melhorar este post!

Diga-nos, como podemos melhorar este post?